Skip to content

A ESCUTA

A escuta é um ofício extremamente complexo. A princípio, alguém falar e o outro ficar em silêncio não é garantia que se esteja sendo escutado. Assim também na música. O fato de se estar ouvindo uma música não se garante que se esteja escutando cada instrumento e cada nuance. Pode-se estar, simplesmente, ouvindo uma massa sonora.

A escuta requer muita sofisticação e acuidade. No caso da música, é a possibilidade de diferenciar a massa sonora e começar a escutar cada instrumento. Uma coisa é ouvir uma orquestra em sua massa sonora. Outra coisa é começar a ouvir o que o primeiro violino toca; qual a linha melódica do segundo violino; qual caminho a flauta está tomando; qual a linha melódica do violoncelo e do baixo; e assim sucessivamente.

Quando um paciente traz a sua peça/texto, qual é o seu primeiro violino? O que a flauta está tocando? E o baixo? Como está o seu “grave” e o seu “agudo”? Como tudo isso soa? Ou, em se tratando de uma boa banda de rock, em quais acordes a guitarra está se apoiando? Qual a linha de baixo? O que a bateria está percutindo? E o teclado? (Alguém se atentou para os acordes do teclado?) O cantor, como está em destaque, é até mais convidativo. Mas ele estaria afinado? E os melismas? Ouvir tudo isso separado, mas junto, é extremamente difícil, tanto na música, quando no concerto fala-voz do paciente. Na verdade, isso é alta-costura sonora, mas fundamental para uma real escuta.

A verdadeira escuta é primor!

No campo do tratamento, é escutar as palavras, mas também a voz e o tom daquilo que se diz – a enunciação. Não é simples, ao mesmo tempo, separar tudo isso e depois juntar, assim como na música.

Freud nos recomenda o que ele denomina de escuta flutuante. Caso se fixe em um único ponto, não se escuta esse conjunto complexo.

Escutar as palavras é fundamental. Contudo, a voz é o tapete das palavras e possui a sua própria melodia. Enquanto falamos as palavras, emitimos uma melodia quase inaudível para os ouvidos. Para conseguir escutar as palavras, juntamente com a sua melodia, exige-se muita prática e ascese.

Mas tudo isso seria um preciosismo ou um luxo em vão? De forma alguma. Escutar as palavras, a sua melodia, o seu tom e as suas nuances leva aquele que está sendo escutado a um outro lugar. Ao ser escutado com todas essas variações, surge um efeito de outra ordem naquele que está proferindo as suas palavras. E que efeitos seriam esses? Efeito de alívio e de catarse. Aqui, catarse como sendo a liberação de afetos. A liberação de afetos vai causando uma maior leveza frente à vida e aos inúmeros desafios que esta apresenta.

Isso é muito diferente de ficar dizendo, a cada frase, o que se pensa e o que se acha a respeito de um determinado tema. Se a cada acorde musical e se a cada melodia proferida se proferisse um julgamento ou uma opinião, não se conseguiria se banhar pela música.

Estar diante das palavras daquele que fala com suspensão de julgamento, com suspensão de um possível pensamento sobre o tema, requer um apagamento que só se adquire estando calejado e com uma prática diária.

Escuto de meus pacientes: “Falei e você não disse nada hoje, contudo saí da sessão muito aliviado(a) e com a ‘cabeça’ pensando muito diferente.” Se eu não disse o que fazer, se não engessei o que foi dito, se não emiti uma opinião sobre o que foi trazido, o que aconteceu? Diria que foi o efeito da escuta atenta e flutuante ao mesmo tempo. A música trazida pelo paciente foi ouvida sem julgamento e sem precipitações. Ele pode realizar o seu concerto sem receber um conserto.

Não que não haja pontuações no texto e na música daquele que fala. Mas essa pontuação é mais próxima do regente que pede mais intensidade ou pede que se toque mais suave ou até que volte ao tema em uma orquestra. Não é uma intervenção que adultere a peça que o compositor quer transmitir.

A escuta requer uma batuta precisa. Requer um apagamento da pessoa daquele que escuta. Requer uma suspensão de qualquer julgamento moral, uma imersão na música daquele que fala! Essa é a ética da escuta.