Comentário sobre a trilha sonora do filme O Evangelho Segundo São Mateus dirigido por Pier Paolo Pasolini
Vou trazer alguns fragmentos da trilha sonora, pois a trilha musical é rica e complexa.
Antes, um breve comentário. Pasolini estudou meticulosamente a paisagem, os rostos e as vestimentas. Criterioso, respeitoso e delicado. Recebe as crianças com um carinho singelo. Pasolini, um diretor tão contundente, mas uma doçura na voz.
Pasolini comenta: o que mais me intriga é que Cristo tenha escolhido um lugar tão árido, tão estéril e sem conforto. Esse cenário remete ao duro do material artístico e do trabalho clínico.
Um verso escrito por São Paulo: Mas Deus escolheu as coisas tolas do mundo para envergonhar os sábios. Deus escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar os fortes. Ele escolheu o que é insignificante no mundo, o que é desprezado, o que é nada, para destruir o que é algo.
Vamos à trilha.
Debruçar nesse trabalho foi me deparar com “o navegar sonoro” nessa obra de Pasolini.
Uma trilha rica e precisa: Sebastian Bach – Wolfgang Amadeus Mozart – Prokofiev e Anton Webern, entre outros.
Há um rigor na escolha de cada peça musical. Um trabalho criterioso.
Algo que me chamou é que as músicas foram compostas à posteriori à vida de Jesus, retratada no filme.
Sim! A música atravessa o tempo. Ela pode ser composta em uma época e influenciar gerações futuras, alcançado séculos depois. Ela se lança no tempo.
No entanto, ela pode também voltar no tempo, como no cinema, e imprimir seus tons no passado – retroativamente.
No filme, a música encaixa-se genuína na história de Jesus, o que aponta a a-espacialidade e a a-temporalidade da música, capaz de dar o tom mesmo fora de sua época ou criada em um contexto completamente diferente. Isso é intrigante.
Nisso, com a diferença que há, se aproxima do funcionamento do inconsciente. Num sonho, os tempos e os espaços se entrelaçam.
Como pode uma música ser composta séculos depois e embalar momentos outros até do passado?
Alguns já tiveram a experiência, de anos depois, ouvir uma canção que enlaçou um namoro ou uma paixão. E quando a ouvíamos novamente, tempos depois, por vezes, volta até o aroma da época. Há um mistério nas notas musicais.
Para onde nos leva a música? Em que registro entramos? Que sentimentos são evocados? Ela é capaz de tocar um afeto instalado?
Há música no filme – com a sua presença. Mas, ao mesmo tempo, está até silenciosa na composição das cenas.
São explorados vários timbres e instrumentos: violino, flauta, oboé, percussão, guitarra e voz.
A direção musical fica sob a batuta de Luis Bacalov, que é pianista, compositor, diretor de orquestra e arranjador argentino radicado na Itália. Ele é conhecido por suas trilhas sonoras cinematográficas. Entre muitas obras, ele, no final dos anos 1970, colaborou com Fellini. Já trabalhou com muitos diretores, incluindo Pasolini, Ettóre Scola, Quentin Tarantino, entre outros. Em 1977, trabalhou com Chico Buarque. (O musical brasileiro Os Saltimbancos Trapalhões).
Na abertura do filme, uma peça: A Missa Luba. A Missa Luba é uma versão da Missa Latina, baseada em canções tradicionais do Congo. Foi arranjada pelo padre franciscano belga Guido Haazen. (Tendo sido cantada pela primeira vez pelos Les Troubadours du Roi Baudouin).
A chegada dos Reis Magos até a criança é embalada ao som de Odetta Holmes, cantora de blues – negra e com voz grave. Ela canta a canção “Sometimes I Feel Like a Motherless Child” – Às vezes me sinto como uma criança sem mãe. Odetta cantou essa canção por longos anos em sua carreira musical.
Como pode um blues se encaixar na visita dos reis magos com uma típica arquitetura da época; com casas de chão de terra batida, com tetos de madeira cobertos com palha, com casas escavadas nas rochas ao pé do morro com paredes de pedra e argamassa? Poderes da música.
Quando o anjo do senhor fala: “Levanta-te, retorna à terra de Israel”, entra o Concerto para Violino e Oboé de Bach.
O encontro de Jesus com João Batista, às margens do rio Jordão, é banhado a Mozart.
Quando Jesus pronuncia a Palavra, em Mateus 7, suas palavras são envoltas na Paixão Segundo São Mateus BWV 244, de Johan Sebastian Bach.
O reencontro com a mãe é ao som do Concerto para Violino em Mi Maior de Bach.
A Santa Ceia é regada com o instrumento dos instrumentos: a voz humana.
Quando ordenado que Jesus seja levado a Pôncio Pilatos, entra mais uma vez um blues – agora de Blind Willie Johnson. A canção é “Dark Was the Night”. Blind viveu entre 1897 a 1945 e foi um músico (vocalista e guitarrista) afro-americano.
No caminho da crucificação, a densidade de Mozart.
A última cena retoma e se liga à música de abertura – A Missa Luba.
Um tecido musical genuíno. Uma colcha que enlaça os pontos.
Poderes da música.
Edson Zaghetto