Skip to content

J.S. Bach: Three Or One – Transcriptions by Fred Thomas

      O álbum foi lançado em 22 de outubro de 2021 pela gravadora ECM New Series, conhecida por sua curadoria refinada e atenção aos detalhes sonoros. A gravação reúne o pianista e arranjador Fred Thomas, a violinista Aisha Orazbayeva e a violoncelista Lucy Railton em interpretações que atravessam a obra de Johann Sebastian Bach com delicadeza, escuta e liberdade criativa.

      Um Recorte no Tempo:

                  Entre Fones

                              e Vinis

      Antigamente, para ter um disco da ECM, era preciso ir a uma cidade grande, por exemplo, o Rio de Janeiro. Era uma verdadeira viagem só para comprar um álbum. Só havia uma loja no Rio que vendia. Então, era um evento. Pegava-se o ônibus na rodoviária, descia-se no Rio, pegava-se outro ônibus e, enfim, ali estava: a estante cheia de vinis. E agora? Qual escolher? Um único disco de vinil era caríssimo. As pessoas iam para um cantinho da loja, onde havia um toca-discos com fones de ouvido. Ouvia-se um, ouvia-se outro — e, então, decidia-se. Voltava-se alegre, pegava-se o ônibus de volta. Sim, um bate e volta no Rio — tudo por causa de um único álbum. E vinha, enfim, a hora tão esperada: colocar o disco na vitrola e ouvir, e ouvir. Ouvir com o amigo músico. E assim era com cada disco da ECM.

      No filme Dias Perfeitos, dirigido por Wim Wenders, há uma cena marcante que revela a inocência e o distanciamento tecnológico do protagonista, Hirayama. Durante uma conversa com uma das personagem, ela menciona o Spotify, ao que Hirayama, sem familiaridade com plataformas digitais, pergunta:

— Spotify… É uma loja? 

      A personagem ri, e parte do público também, mas será que ele não tem razão?

      Hoje, é um link. Simples assim: você clica — e pronto.

São magias diferentes…

Link para o álbum no Spotify

Bach na ECM: silêncio e espiritualidade

      A estética sonora da ECM é parte inseparável da experiência do disco. O produtor Manfred Eicher, conhecido por seu ouvido quase pictórico, cria um espaço acústico onde a espiritualidade de Bach se alia à densidade emocional de uma música que parece pairar no tempo — nem mais barroca, nem moderna, mas atemporal.

Uma nova escuta para um velho mestre

      O álbum Three Or One oferece uma proposta ousada e sensível: revisitar a obra de Johann Sebastian Bach por meio de transcrições contemporâneas elaboradas pelo pianista e compositor britânico Fred Thomas, em colaboração com os músicos Aisha Orazbayeva (violino) e Lucy Railton (violoncelo). Lançado pelo prestigiado selo ECM New Series, o disco nos convida a uma escuta ao mesmo tempo íntima e expansiva das peças de Bach, em que a tradição se abre ao improviso, ao silêncio e à respiração.

Transcrever como forma de escuta criativa

      As transcrições de Thomas não são apenas adaptações instrumentais — são releituras que colocam Bach em diálogo com a escuta contemporânea, com a tradição do jazz, do minimalismo e da música experimental. O pianista escolhe obras corais e peças do Orgelbüchlein, oferecendo versões que respeitam a arquitetura harmônica de Bach, mas não hesitam em alargar seus espaços internos.

      A faixa de abertura, Ach bleib bei uns, Herr Jesu Christ, é um bom exemplo desse tratamento: a progressão se desdobra em camadas de ressonância delicada, com intervenções que beiram o silêncio, permitindo que a reverberação diga tanto quanto a nota tocada.

O trio como um só

      O título do álbum, Three Or One, sugere não apenas a questão do número de vozes — sempre central na música polifônica de Bach —, mas também a experiência de escuta proposta pelo trio: apesar da clara divisão instrumental, há uma unidade respiratória, quase mística, entre os músicos. O violino de Orazbayeva e o violoncelo de Railton soam, por vezes, como extensões do próprio piano, num gesto contínuo de escuta recíproca.

Para além da fidelidade histórica

      Three Or One é um convite a escutar Bach não com os ouvidos da tradição filológica, mas com os ouvidos do presente — um presente que sabe que cada transcrição é também uma tradução, e cada tradução, uma forma de invenção. Thomas nos mostra que, mais do que preservar, tocar Bach é reviver.

      Como propõe Didier-Weill, a música, especialmente a de Bach, opera em três níveis: estrutura, discurso e afeto.

      A música de Bach fala não por aquilo que significa, mas por aquilo que estrutura no tempo. Sua escuta revela uma arquitetura sonora que ressoa com a experiência subjetiva do tempo, marcando afetos, gestos e pausas. Em meio à sua complexidade formal, sua música dá voz ao silêncio, inscrevendo no ouvido algo que escapa, mas que toca profundamente o sujeito.

Edson Zaghetto