A importância de fazer terapia na língua materna
Na terapia, as palavras são muito mais do que um meio de comunicação — elas são os fios que conectam a nossa história, os nossos afetos e a nossa identificação mais profunda.
Fazer terapia na sua língua materna é como reencontrar um lugar. É como diz Milton Nascimento na música – A Voz Feminina do Cantor:
“Minha mãe que falou
Minha voz vem da mulher
Minha voz veio de lá, de quem me gerou”
Essa voz que ouvimos é que nos deu o norte/som pelo viés da língua materna. Ao expressar sentimentos, dores e alegrias na língua materna em que crescemos, conseguimos acessar aquelas camadas mais íntimas escondidas em nosso recôndito. Ao falarmos na língua materna, o coração se abre permitindo que o difícil de dizer flua com leveza.
Em momentos de mudança – como, por exemplo, morar no exterior – há acolhimento especial em poder falar na língua em que aprendemos a dar nome ao mundo e aos nossos afetos. Isso é fundamental para criar um espaço terapêutico seguro, onde você pode se sentir acolhido e compreendido.
Tenho pacientes no Canadá, Suíça, Alemanha, França, Estados Unidos, entre outros países, onde o português não é o idioma predominante, mas que sentem calor no coração ao poderem fazer seu tratamento na língua materna.
Contudo, nada impede que se faça a terapia em outra língua. Inclusive, tenho pacientes que são estrangeiros e fazem seu tratamento, por exemplo, em português. É, também, extremamente rico este processo. É uma prática da busca dos significados que desembocam em significantes.
As falas que emergem do fundo da alma, que carregando memórias da infância e das relações mais profundas, são muitas vezes difíceis de traduzir. Na terapia, essas nuances fazem toda a diferença, pois é nelas que encontramos muitas das respostas que buscamos.
Ao falar na língua materna, tocamos na “pontuação” do texto de nossa vida. Curiosamente, Clarice Lispector não estava tão preocupada com a tradução dos seus textos para outras línguas; sua preocupação era com a pontuação.
Clarice Lispector expressou sua inquietação com a preservação da pontuação original de suas obras durante o processo de tradução. Em uma carta ao editor francês Pierre de Lescure, da editora Plon, ela afirmou:
“A pontuação que eu emprego no livro não é acidental e não resulta de uma ignorância das regras gramaticais. […] Estou plenamente consciente das razões que me levaram a escolher essa pontuação e insisto que ela seja respeitada.”
Além disso, em sua crônica “Traduzir procurando não trair”, publicada na Revista Jóia em maio de 1968, Clarice refletiu sobre os desafios da tradução, destacando a importância de manter a fidelidade ao espírito do texto original, o que inclui aspectos como a pontuação.
Cada palavra é uma chave que pode abrir portas para o nosso inconsciente. Quando falamos na terapia, não estamos apenas contando uma história; estamos revivendo experiências, resgatando memórias e acessando afetos que carregam suas raízes.
E é nesse espaço de acolhimento que o terapeuta, ouvindo atentamente as palavras, pode ajudar a transformar essas histórias em caminhos de cura e descoberta.
Escolher fazer terapia na língua materna é, na verdade, escolher cuidar dos significantes. É criar um campo onde as palavras têm o peso e a profundidade acústica. É um gesto que cria um espaço onde afetos podem ser tocados com libertação.
Reconfortante sentir esse abraço em sua própria língua, onde cada palavra soa como um retorno ao lar.
Que a terapia, então, seja esse lugar seguro onde você possa se reconhecer, se acolher e, aos poucos, se curar.
Edson Zaghetto