
Só Dez por Cento é Mentira
“Noventa por cento do que eu escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira.”
E, Manoel prossegue: “A invenção é um negócio profundo. Serve para aumentar o mundo.”
Manoel de Barros
Documentário com direção de Pedro Cezar. Está disponível na Netflix e no Youtube pelo link:
Logo no início do documentário, é apresentado como Manoel de Barros autorizou a realização do filme.
Pedro Cezar conta:
“Eu passei alguns dias em Campo Grande tentando convencer Manoel a falar, e ele sempre trazia argumentos bastante convincentes, mostrando-me que não faria sentido entrevistá-lo.
Chegou até a dizer que o ser biológico ‘Manoel’ era totalmente sem graça, e que eu devia me concentrar no ser letral — somente nos livros.
Eu insisti — e, depois de muitas idas e vindas, Manoel encerrou o assunto afirmando que a sua arte só se expressava por escrito.
Aí eu desisti. Falei:
— Deixa pra lá, Manoel. Era só um sonho…
Manoel fez um breve silêncio e ordenou que eu trouxesse minhas tralhas no dia seguinte, bem cedo.”
“Tudo que não invento é falso.”
Manoel de Barros
“Sempre achei que a função da arte não é a de explicar, mas a de encantar.” Essa frase, dita por Manoel de Barros no documentário Só Dez por Cento é Mentira, não apenas resume sua poética, mas aponta para um gesto ético: a arte como aquilo que sustenta o enigma.
Dirigido por Pedro Cezar, o filme se recusa a montar um retrato biográfico linear. Em vez disso, deixa-se contaminar pela linguagem barroana, adotando um ritmo de escuta, cortes poéticos e imagens que parecem nascer da terra, da infância, da fala torta.
O título do documentário — retirado de uma fala do poeta (“Só dez por cento é mentira… o resto é invenção”) — já introduz a lógica do paradoxo, da torção de sentido. Não se trata de distinguir o que é real do que é inventado, mas de habitar a zona em que essa diferença vacila.
Isso é muito clínico. Lembro-me de que, certa vez, atendi uma paciente muito jovem. Em uma primeira entrevista com os pais, eles diziam que ela mentia muito e, por isso, a traziam ao tratamento. Em nenhum momento duvidei do que a paciente dizia. Se ela dizia, era a sua verdade, e caminhávamos juntos por essas sendas.
Sempre acreditei que, se ela estava falando, era sua verdade, independentemente da realidade dos fatos. Claro que isso dentro de um contorno clínico, mantendo os ouvidos atentos a muitos aspectos, inclusive avaliando possíveis perigos e riscos. Mas o que ela dizia não tinha risco ligado à realidade, e sim era muito mais da ordem das fantasias.
Depois de um tempo de tratamento, os pais quiseram falar comigo, querendo saber o que eu tinha feito para que ela tivesse parado de mentir. Apenas os olhei… Uma parte do trabalho tinha tido efeito.
A escuta do ínfimo
O documentário nos apresenta Manoel não como uma “celebridade”, mas como alguém que soube escutar o que é deixado de lado: o entulho, o lodo, a palavra quebrada. Sua poesia se constrói como uma arqueologia do ínfimo:
- a gramática dos sapos;
- a língua das pedras;
- o alfabeto das formigas.
Nesse sentido, o filme não apenas mostra Manoel, mas encena sua poética: imagens lentas, vozes sobrepostas, naturezas mortas que vivem. É uma obra que convida o espectador não a entender, mas a escutar — e essa escuta é sempre deslocada, como o verbo que “se avessa”.
Na poesia de Manoel, encontramos aquilo que é desprezado: o simples e o ínfimo. Adentra-se o campo do intervalo, do entre-mundos.
O sujeito entre os restos
Na psicanálise, há um lugar privilegiado para aquilo que foi recusado, rejeitado ou não simbolizado. Freud fala dos restos diurnos que o sonho reelabora; Lacan insiste que o sujeito se constitui a partir do que falta. Manoel de Barros, em sua obra, parece intuir isso com aguda precisão poética:
“Sou sujeito a entulhos. Minha língua é feita de perdas.”
O documentário, ao se recusar a organizar uma “biografia oficial”, nos permite acessar Manoel como um sujeito que habita a linguagem pelo avesso. Ele próprio diz:
“Se interesse pelo meu ser letral, pois meu ser biográfico é desinteressante.”
Aqui, o “ser letral” pode ser aproximado do lalangue de Lacan — essa língua que não é comunicação, mas corpo de gozo, ruído, tropeço, música.
Inspirado pela poética de Manoel de Barros, esse personagem cria objetos deliberadamente inúteis, como o “esticador de horizontes”, “aparelho de ser inútil”, “captador de inaudíveis.”
Uma invenção que, embora sem utilidade prática, carrega um profundo significado simbólico.
Entre infância e delírio
A criança é o sujeito que ainda habita a linguagem como jogo. Manoel, com mais de 90 anos no momento das filmagens, continua a brincar com as palavras como um menino no quintal, em seu baú de infância.
Aos 93 anos, diz que até hoje só teve infância e, portanto, escreve apenas sobre ela. Depois dos 70, entrou no que chama de terceira infância e passou a produzir cada vez mais.
“Eu não uso a linguagem para me comunicar. Uso para me desentender.”
Esse desentendimento é, talvez, a mais radical forma de escuta — uma escuta que não reduz o outro a um sentido, mas o acolhe em seu enigma. O documentário, por sua vez, oferece ao espectador essa experiência: não “entender” Manoel, mas ser atravessado por sua presença, sua ausência, seus intervalos.
A função poética do sintoma
Se o sintoma é uma solução singular para um impasse do desejo, a poesia de Manoel pode ser lida como um sintoma que dá forma — não ao trauma no sentido comum, mas àquilo que escapa da norma, do utilitário, da gramática.
Manoel escreve com palavras “desfuncionalizadas”, inventa verbos, desloca sentidos. Ele não escreve sobre o mundo; faz o mundo recomeçar de dentro da palavra.
Para concluir: a verdade mentirosa da poesia
Só Dez por Cento é Mentira é mais que um documentário: é um gesto de montagem que escuta o poeta com o mesmo cuidado com que ele escuta as coisas desprezadas. É, portanto, uma obra que também analisa — no sentido etimológico do termo: tecer ao redor dos nós, bordejar.
Manoel de Barros ensina que a verdade da poesia não está no que ela explica, mas no que ela inventa a partir da falta. E o filme nos ensina que há formas de ver e ouvir que não servem para esclarecer, mas para nos deixar em estado de pergunta.
Manoel nos aponta:
“Repetir, repetir, repetir para ficar diferente.”
Essa, inclusive, é a base do tratamento: repetir, no tratamento, para repetir menos na vida. No tratamento, devemos repetir sem piedade, até que fique diferente…
Edson Zaghetto