Filme “Vier Minuten” (Quatro Minutos)
Concerto – Desconcerto – Desconcertante
Uma relação possível?
O filme Vier Minuten (2006), dirigido por Chris Kraus, narra a complexa relação entre Jenny, uma jovem prisioneira com talentos musicais e a Sra. Krüger, uma rigorosa professora de piano.
Jenny carrega marcas profundas de traumas da infância e da juventude, que se manifestam em sua agressividade e comportamento autodestrutivo.
A música, para Jenny, funciona como um canal de sublimação. O piano torna-se, para ela, o espaço onde o excesso traumático pode ser simbolizado e transformado.
A relação entre a Sra. Krüger e Jenny exemplifica o processo de transferência. A Sra. Krüger, rigorosa e disciplinadora ajuda Jenny a dar forma e sentido ao seu desejo pela música. Ao mesmo tempo, a Sra. Krüger vive seus traumas, como suas experiências na Segunda Guerra Mundial e suas escolhas pessoais.
O piano é mais do que um instrumento musical; ele se torna um mediador simbólico entre Jenny e a Sra. Krüger, representando tanto a disciplina como a liberdade. A música permite que Jenny organize seu desejo em torno de algo que não é apenas destrutivo, mas criativo e transformador.
A relação entre Jenny e a Sra. Krüger está marcada por limites, conflitos e tensões. A Sra. Krüger impõe regras, dando continente aos impulsos destrutivos de Jenny. É isso que permite que Jenny alcance um nível mais elevado de expressão artística e subjetiva.
A cena final do filme, em que Jenny toca sua composição durante o recital na prisão, é um momento catártico de transformação, algo que rompe com as determinações do passado e cria um espaço de subjetivação. O recital de Jenny não é apenas uma performance musical; é um ato que afirma sua existência como sujeito desejante e criativo, transcendendo o lugar de opressão em que vive.
O filme dialoga com as dissonâncias e com as tensões musicais. Trata da desconstrução e da reconstrução de Jenny como sujeito. A música final de Jenny mistura harmonias tradicionais com elementos disruptivos, refletindo sua luta interna e sua singularidade como artista.
Vier Minuten é uma narrativa sobre como o sujeito pode encontrar uma forma de expressão criativa que transcende as limitações do trauma, do ambiente opressivo e das expectativas. O filme oferece uma rica análise das dinâmicas de transferência, do papel do simbólico na constituição do sujeito e da sublimação como uma saída para os impasses psíquicos.
A história de Jenny nos lembra que é nas condições adversas que o desejo pode ser o motor de transformação e criação, permitindo que o sujeito bordeje o vazio de sua existência e construa algo singular e potente, como sua música.
Concerto, desconcerto e desconcertante – uma relação possível?
A palavra concerto, derivada do latim concertare tem significados que evoluíram ao longo do tempo.
No original, concertare indicava uma interação, que podia ser um confronto ou uma disputa. Este pensamento de tensão e colaboração é fundamental para entender o desenvolvimento do termo.
No contexto musical, concerto passou a significar uma composição onde há um diálogo entre um ou mais instrumentos solistas e uma orquestra. Aqui, o termo retém a ideia de interação e tensão harmônica, mas agora dentro de um equilíbrio e cooperação.
Assim, concerto carrega em seu cerne a ideia de colaboração e equilíbrio, seja no sentido literal, musical ou metafórico, com raízes na tensão produtiva de elementos distintos que se unem para formar um todo harmônico.
No concerto, tem-se uma consonância de vozes, de sons e de harmonia: cada voz ou partitura com seu canto próprio em um entrelaçamento complexo onde se entrecruzam vozes e tessituras tonais, criando-se a peça musical intitulada concerto.
O concerto é peça musical extensa. No concerto há uma oposição de um ou mais instrumentos solistas a uma orquestra ou a um grupo instrumental. Concerto, então, é um gênero de composição musical em que um ou mais instrumentos solistas são postos em destaque em relação a um acompanhamento de orquestra. O intérprete-solista é levado a salientar a técnica de seu instrumento e as qualidades de seu virtuosismo. O concerto exige grande dificuldade de execução e grande complexidade harmônica.
O concerto instrumental-vocal, primeiro tipo de música com características concertantes, prosperou principalmente nas capelas italianas e alemãs.
A alternância entre partes executadas por um conjunto orquestral e partes interpretadas por um ou mais instrumentos solistas começou a ser empregada no século XVI e deu origem ao concerto, que desde então se desenvolveu a ponto de constituir, no século seguinte, um dos gêneros mais importantes da criação musical.
A designação concerto só passou a corresponder a um gênero específico de composição na fase do barroco (aproximadamente de 1580 a 1750).
Em meados do século XVII, se destacaram Arcangelo Corelli, Vivaldi, Albin oni e outros. As obras dessa fase eram puramente instrumentais, a maioria delas em três movimentos (vivo, lento e vivo).
A partir de 1780 em diante, com Haydn e, sobretudo, com Mozart, o concerto ganhou outros marcos fundamentais: o concerto para piano e orquestra, criação mozartiana, e várias outras modalidades conquistaram os teatros, passaram a constar do ensino da música e a ter movimentos eventualmente executados nos intervalos de espetáculos teatrais.
Entre os românticos, a estrutura do concerto adquiriu novas dimensões, e o piano tornou-se o instrumento principal de solo. Em meados do século XIX, há obras-primas no período, tanto para piano como para violino, de Beethoven, Schubert, Schumann, Brahms, Mendelssohn, Liszt e Chopin.
No século XX, a tendência ao entrelaçamento de motivos melódicos polifonicamente organizados foi retomada por vários autores.
O desenvolvimento do concerto moderno emergiu em inovadores como Prokofiev, Ravel, George Gershwin, Villa-Lobos, Cláudio Santoro e Camargo Guarnieri.
No concerto, pois, tem-se um contraponto entre as vozes. O instrumento solista e o suporte orquestral estabelecem um diálogo musical, com características assimétricas em sua estrutura.
Concerto: A Busca pela Harmonia
Na música, o concerto é caracterizado pela harmonia entre o solo e o coletivo, exigindo uma estrutura que equilibre diferentes elementos para criar uma peça coesa. No filme, a relação entre Jenny e Sra. Krüger pode ser vista como um concerto em construção. Apesar do conflito inicial, a música se torna o espaço simbólico que organiza o caos interno de Jenny e a disciplina e o rigor da Sra. Krüger.
• Jenny como o solista: Em sua performance musical, Jenny se apresenta como a solista que tenta encontrar sua própria voz em meio ao caos de sua história de vida e à estrutura opressiva do presídio.
• Sra. Krüger como a regente: A professora assume o papel de guia, impondo limites e moldando a expressão de Jenny, como se regesse uma orquestra que, inicialmente, está desorganizada.
O concerto pode ser lido como a tentativa de articular o desejo do sujeito em um registro simbólico que o permita expressar-se de forma estruturada e criativa.
Desconcerto: O Confronto com a Falta
O desconcerto, por outro lado, pode representar a ruptura da harmonia, a desorganização que desafia as estruturas tradicionais. No filme, essa dimensão aparece de diversas formas:
• Na música de Jenny: Sua performance final é marcada por uma ruptura deliberada das normas clássicas, introduzindo dissonâncias e elementos disruptivos. Esse momento reflete a luta de Jenny para expressar seu desejo singular, que não pode ser plenamente contido pelas formas convencionais.
• Na subjetividade de Jenny: O filme mostra como o sujeito é constantemente confrontado com o desconcerto de sua própria história, especialmente quando traumas, violências e perdas não foram simbolizados. Jenny vive esse desconcerto na relação com seu corpo, com o Outro e com a linguagem.
O desconcerto é o momento em que o sujeito se depara com a falta estrutural que organiza o desejo. O sujeito precisa lidar com o vazio e com a impossibilidade de completude.
Desconcertante: O Encontro com o Real
O desconcertante vai além do desconcerto, pois remete ao encontro com algo que não pode ser plenamente simbolizado. O encontro com aquilo que escapa à linguagem e insiste como uma fissura na estrutura do simbólico. No filme, o desconcertante aparece:
• Na performance final de Jenny: A música que ela toca desafia não apenas os limites da forma musical, mas também as expectativas do público e da própria Sra. Krüger. É um ato de sublimação que ao mesmo tempo revela e contorna o insuportável.
• No confronto com o trauma: O passado de Jenny e o rigor da Sra. Krüger carregam elementos desconcertantes que são progressivamente trabalhados ao longo do filme. Esses traumas, por vezes irrepresentáveis, são abordados simbolicamente na relação com a música.
Esse momento desconcertante é fundamental, pois é através dele que o sujeito pode reorganizar sua relação com o desejo.
No Horizonte do Concerto e do Desconcerto
Na clínica, o terapeuta, muitas vezes, assume o papel de regente que ajuda o paciente a dar forma ao seu desejo, mas sem eliminar o desconcerto inerente à experiência subjetiva. O terapeuta não preenche o vazio, mas possibilita que o paciente bordeje esse vazio e articule novas formas de se relacionar com ele.
O filme exemplifica esse processo:
• Sra. Krüger e Jenny: A relação terapêutica implícita entre elas é um espaço onde o desconcerto de Jenny é acolhido e trabalhado. Sra. Krüger, como uma espécie de “analista”, sustenta o vazio e permite que Jenny transforme seu desconcerto em algo criativo e singular.
Já o desconcerto, na música, tem o significado de falta de harmonia, desentoação, dissonância. Enquanto no concerto temos vozes se contrapondo, no desconcerto as vozes se contrapõem no radical da dissonância e da desarmonia enquanto combinações sonoras mais duras, mais enxutas e que exigem mais de seus ouvintes.
Por Jenny ter se submetido ao rigor da própria música ela pôde chegar à libertação. A ideia de “submeter-se para ganhar a libertação” remete a um paradoxo central em muitos processos de subjetivação e amadurecimento psíquico. Esse movimento pode ser compreendido como uma aceitação da falta, da castração e das limitações impostas pelo campo simbólico.
Submeter-se, nesse contexto, não significa abdicar de si, mas reconhecer que o desejo sempre será marcado por uma falta estrutural, uma impossibilidade de completude.
É quando o sujeito aceita essas limitações – as regras da linguagem, da cultura e as condições impostas pelo campo simbólico é que ele pode começar a operar de maneira mais livre e autônoma dentro dessas estruturas.
Submeter-se seria, assim, um reconhecimento da alteridade e da impossibilidade de total controle, o que paradoxalmente abre espaço para a criatividade, a subjetivação e a reorganização do desejo.
A libertação, nesse caso, não seria a negação das limitações, mas a capacidade de agir e desejar dentro delas. Quando o sujeito tenta resistir constantemente ao simbólico, ele fica preso a uma luta interminável e improdutiva contra aquilo que é estrutural.
Ao se submeter, ele integra essas condições em sua subjetividade, o que o capacita a lidar com elas de maneira produtiva.
Essa formulação também pode ser aplicada em contextos sociais, filosóficos e espirituais. Em várias tradições, a ideia de “entregar-se” ou “aceitar” é vista como um caminho para a liberdade. O ato de submeter-se pode ser interpretado como uma rendição ao fluxo da existência, àquilo que não pode ser controlado, permitindo que o sujeito experimente a liberdade de uma maneira mais profunda e integrada.
Portanto, o submeter-se leva à libertação é um movimento de reconhecimento e aceitação do que não pode ser mudado, ao mesmo tempo em que possibilita uma transformação interna.
Conclusão
Vier Minuten é uma obra que encapsula a dinâmica entre concerto, desconcerto e desconcertante, oferecendo uma narrativa que ressoa profundamente. O filme demonstra como o sujeito, ao confrontar sua falta e seu trauma, pode transformar o desconcerto em ato criativo, reorganizando sua relação com o simbólico e com o Real.
Na clínica, assim como na música, o concerto não é a eliminação do desconcerto, mas sua articulação em algo que permita ao sujeito existir e criar, mesmo frente ao vazio que o constitui. O filme é, portanto, um poderoso exemplo de como a arte e a terapia dialogam na busca por significação e expressão do desejo.
Edson Zaghetto