Peças marcadas por uma construção
A história do vaso remonta aos primórdios da civilização humana. O vaso foi um dos primeiros objetos criados pelo homem. Os primeiros vasos foram criados durante o Neolítico, há cerca de 10.000 anos. Esses vasos eram feitos de argila moldada e endurecidos ao sol ou em fornos rudimentares. Por volta de 4.000 a.C., o torno de oleiro foi desenvolvido na Mesopotâmia.
No Egito, também foram usados em rituais funerários. Na Grécia Antiga, foram elevados à categoria de arte. Na China, com os seus vasos elegantes, influenciaram culturas ao redor do mundo. Em Roma, eram utilizados para armazenar vinho, azeite e outros líquidos.
Os vasos tiveram sua função funerária, ritualística e artística.
Durante o Renascimento, a cerâmica artística renasceu com ornamentos elaborados. No século XIX, a produção industrial transformou os vasos em objetos mais acessíveis, embora os vasos artesanais e decorativos continuassem a ter grande valor. Hoje, os vasos estão presentes em praticamente todas as culturas, tanto como objetos utilitários quanto como peças de arte e decoração.
O vaso, portanto, simboliza a criatividade humana em aliar funcionalidade e estética, acompanhando a evolução cultural e tecnológica da humanidade.
Através do vaso, é possível articular um olhar sobre o vazio das formas. Peças que se esculpem a partir de caminhos desconhecidos, que vão compondo-se graças ao trabalho do artista e às intervenções que se impõem sobre si mesmas. A partir de um não saber o que virá, vai construindo um próprio saber da peça.
As peças saem do torno e tornam-se – um verdadeiro laboratório de criação. Objetos que possuem um vazio, um oco. Espaço oco e espaço contornado. Instala-se um intervalo que nos esculpe.
Os furos, o oco, os vazios cavam um espaço no maciço do barro. A partir destes vazios, abrem-se as possibilidades para as formas, para o que virá. Como a vida. Sim, as peças surgem vivas. E com luminosidade.
Como na música, em que uma nota leva a outra, um acorde leva ao outro. O efeito são formas orgânicas, musicais. São superfícies enigmáticas. Outro lugar instala-se. Os vazios e os contornos nos impõem a repensar as formas.
O Vaso e o Vazio: A Estrutura do Sujeito
O Vazio Como Estrutural:
O vazio no centro do vaso é o que define sua função: ele não existe para ser preenchido, mas para conter e dar forma ao que se desloca em torno dele. O sujeito é estruturado em torno de uma falta essencial, uma ausência que não pode ser eliminada. Essa falta, simbolizada pelo vazio, é o motor do desejo.
Bordejar o Vazio:
Assim como o vaso não tem como objetivo eliminar o vazio, o tratamento não visa “preencher” a falta do sujeito. Ao contrário, trata-se de trabalhar em torno dessa falta, de “bordejar” o vazio, permitindo que o sujeito construa sentidos e elaborações que o conectem ao desejo.
O Desejo e o Contorno:
O desejo é aquilo que se organiza em torno da falta. O vaso, com seu contorno que delimita o vazio, pode ser entendido como uma metáfora para o desejo: ele nunca busca eliminar o vazio, mas reconhece sua existência e se move em torno dele.
O Tratamento terapêutico e o Vaso
O Espaço Terapêutico Como Vaso:
O lugar do tratamento pode ser visto como um vaso simbólico, um lugar que acolhe o sujeito e seus significantes, oferecendo um contorno onde o vazio pode ser simbolizado. O terapeuta não busca preencher o vazio do paciente, mas ajudá-lo a reconhecer sua função estruturante.
A Palavra Como Bordejo:
No processo terapêutico, a palavra é um movimento que bordeja o vazio. Através da fala, o paciente contorna suas faltas, dá nome ao que antes era inominável e encontra novas formas de relação com seus desejos e conflitos.
A Sustentação do Vazio:
Ao terapeuta cabe dar suporte ao vazio, sem tentar preenchê-lo com respostas prontas, interpretações excessivas e/ou psicologizantes. Essa sustentação permite que o sujeito construa seus próprios contornos, simbolize sua falta e articule seu desejo.
O Vaso e a Arte da Subjetivação
O Vaso Como Metáfora da Subjetividade:
O vaso, enquanto forma que circunda o vazio, é uma representação da subjetividade: somos moldados por nossas faltas e desejos, que não podem ser eliminados, mas que nos impulsionam a criar, simbolizar e transformar.
Sublimação e Criação:
Assim como o vaso é uma criação que organiza o vazio, a sublimação transforma a falta em produções significativas. O tratamento pode ser visto como um processo criativo, onde o sujeito encontra novas formas de bordejar seu vazio, produzindo sentidos e reorganizando sua relação com o mundo.
Um Caso Clínico de Experimentação
Relato Clínico: A Experiência Transformadora da Palavra em Fluxo
Durante uma sessão terapêutica, um paciente relatou uma vivência marcante, descrita por ele como um estado de profundo relaxamento e paz interior inigualável. Ele prosseguiu sua fala de forma espontânea na sessão, como se estivesse sendo conduzido por algo maior do que sua própria intenção consciente. A experiência foi acompanhada por um fluxo contínuo e pacífico de palavras, enquanto seu corpo demonstrava um relaxamento notável.
O paciente relatou a vivência de um estado que descreveu como um vazio. Contudo, enfatizou que esse vazio não era experimentado de maneira negativa, mas como algo que proporcionava descanso e alívio. Ele descreveu a experiência como neutra, nem boa nem ruim, mas simplesmente como um estado de ser, livre de juízos ou afetações emocionais.
O paciente compartilhou que havia buscado esse estado por muitos anos em práticas como artes marciais, meditação e outras abordagens voltadas para o autoconhecimento e a serenidade. Contudo, relatou que foi somente no contexto da terapia, ao permitir que sua palavra emergisse livremente e sem censuras, que conseguiu acessar esse estado.
Essa vivência ilustra a potência do espaço terapêutico como um lugar onde a palavra pode ser colocada em movimento, não apenas como um veículo de comunicação, mas como um caminho para acessar camadas profundas da subjetividade. A escuta sensível e a possibilidade de elaborar afetos por meio do discurso permitiram ao paciente vivenciar um momento de integração psíquica e corporal.
O relato aponta para a importância do falar em um ambiente acolhedor, onde o sujeito pode experimentar a palavra não como um esforço, mas como um fluxo natural e transformador. Essa experiência ressalta o papel do tratamento em possibilitar a ressignificação de vivências e a abertura para estados subjetivos que, muitas vezes, permanecem inacessíveis em outras abordagens. O paciente pode experimentar um tanto desse bordejar em torno do vazio.
Conclusão
O vaso, com seu vazio central e seus contornos bem definidos, oferece uma metáfora potente para o tratamento. Ele nos ensina que o vazio não é algo a ser eliminado, mas a ser reconhecido e simbolizado. No processo terapêutico, assim como na criação de um vaso, o trabalho está em bordejar esse vazio, permitindo que o sujeito encontre novas formas de desejar, criar e se relacionar.
Engravide-se das formas. Submeta-se à obra – às suas marcas, às suas imperfeições. Transforme-se. Crie. Improvise!
Edson Zaghetto