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Michael Hedges
Álbum - Aerial Boundaries

Link do Spotify

 

Uma revolução em cordas

      Em Aerial Boundaries, Michael Hedges não apenas gravou um álbum de violão — ele redesenhou o instrumento.

      Com um violão de aço em mãos, microfones posicionados com precisão e uma concepção musical radical, Hedges expande os “limites aéreos” do som e da técnica, como o próprio título sugere.

      Cada faixa do álbum é uma paisagem sonora que nasce da capacidade de Hedges de extrair polifonias impossíveis de um único instrumento. Percute, arpeja; harmônicos saltam do corpo do violão como se fossem notas etéreas. O que ouvimos é simultaneamente melodia, harmonia, percussão e ressonância — uma orquestra em um só músico.

 

O violão como corpo expandido

      Michael Hedges foi um arquiteto sonoro. Sua abordagem ao violão envolvia técnicas então pouco exploradas no instrumento:

  • tapping com ambas as mãos,
  • uso expressivo dos harmônicos naturais e artificiais,
  • afinações alternativas (como o “C2-G2-D3-G3-B3-D4”),
  • e uma exploração do violão como corpo vibrátil, percutido, esfregado e suspenso no tempo.

      Para além da técnica, havia uma escuta profunda e uma intuição composicional que aproximavam Hedges tanto de Bach quanto do minimalismo contemporâneo. Suas composições não são exercícios de virtuosismo gratuito, mas peças estruturadas com rigor, sentimento e — paradoxalmente — leveza.

 

Um inventor de instrumentos (e de linguagens)

      Hedges não só repensou a forma de tocar o violão, como também chegou a projetar variações do instrumento. Trabalhou com luthiers na criação de modelos de harp guitar e violões com afinações alternativas integradas ao design.

      Sua curiosidade e seu domínio técnico abriam espaço para uma expressividade livre, muitas vezes associada à dança ou ao voo — daí a potência metafórica do título Aerial Boundaries.

      Ele inspirou gerações posteriores de violonistas experimentais, como Andy McKee, Kaki King, Don Ross e Antoine Dufour. Mas sua estética é inconfundível: um equilíbrio entre disciplina e delírio, controle e entrega.

 

O som como travessia

      Aerial Boundaries não é apenas um álbum de técnica refinada. É uma escuta que convida o ouvinte a se deslocar — não geograficamente, mas internamente. A faixa-título, com seus ataques precisos e silêncios carregados de tensão, nos coloca numa espécie de suspensão afetiva. É o som de um salto. Um espaço entre o impulso e o pouso.

      “Rickover’s Dream” é quase uma narrativa onírica, com a fluidez de uma lembrança que não se deixa capturar.

      Já “Spare Change” brinca com ritmos irregulares e timbres múltiplos, desafiando a noção de que um violão tem apenas uma “voz”. Cada peça do álbum opera como um afeto em forma sonora.

 

Entre bordas e abismos

      Aerial Boundaries está no limite — e em sua travessia. O álbum inteiro parece sustentar um jogo entre o contorno e o que o excede: a borda entre o som e o silêncio, entre o que o corpo pode executar e o que o desejo empurra além.

      Hedges ocupa uma posição que inventa onde falta. O som, em seu caso, não é resposta, mas construção. Ele habita o intervalo como quem constrói um território — uma borda aérea, um limite habitável.

 

Legado e ausência

      Michael Hedges faleceu precocemente, em 1997, aos 43 anos, em um acidente de carro. Mas Aerial Boundaries permanece como um marco — não só da história do violão, mas da escuta contemporânea. Um álbum que pode ser ouvido como técnica, como arte, como meditação e como experiência de transbordamento.

      Na escuta clínica, chamamos isso de “instante de ver”, quando algo irrompe para além do já sabido. Talvez Aerial Boundaries seja isso: a irrupção de um som que não deveria existir, mas que, ao acontecer, muda tudo.

      Michael Hedges também tinha uma voz encantadora.

      “Woman of the World”, canção lançada no cativante álbum Watching My Life Go By (1985), destaca-se por sua poesia lírica e pela habilidade de Hedges em transmitir emoções profundas através de metáforas naturais.

      “A Mulher do Mundo” pode ser interpretada como uma personificação da natureza, do tempo ou de uma figura feminina que guia e transforma o eu lírico.

 

Mulher do Mundo

 

A mulher do mundo gira lentamente

Os dias se alongam — as estações começam a mudar

Ela encontra aquele limite natural

Seus olhos mudam de cor — os sons começam a desaparecer

Eu lentamente me afasto… da mulher do mundo​

A mulher do mundo me conduz

a cursos mais frios, mais distantes no mar,

onde ninguém realmente me conhece.

E, se a âncora está lançada, os amantes amam e partem,

ela está esperando na praia…

minha mulher do mundo​

Ninguém ouve a maneira como ela sussurra cada estação que muda

Através de cada chuva que cai, eu escuto sem razão…

Sem razão…​

Até que a mulher do mundo me mostra

a semente secreta que ela plantou em meu coração.

Sua respiração é fresca para me influenciar,

raízes se aprofundam,

seus olhos começam a brilhar,

meu amor cresce em folhas e vinhas

através da mulher do mundo…​

Edson Zaghetto