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As Falls Wichita, So Falls Wichita Falls:
Músicos: Pat Metheny, Lyle Mays e Naná Vasconcelos

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Um álbum que escuta o tempo

      Lançado em 1981, As Falls Wichita, So Falls Wichita Falls não é apenas um marco na parceria entre Pat Metheny e Lyle Mays — é uma paisagem sonora que tensiona as fronteiras entre o jazz e o minimalismo.

      O disco se constrói como uma narrativa que dispensa palavras, mas diz muito.

      A faixa-título, com sua estrutura livre e atmosférica, nos transporta para uma espécie de viagem auditiva — uma travessia entre espaços internos e externos, entre memórias e afetos, entre o som e o silêncio. O uso de sintetizadores por Mays, aliado à guitarra quase líquida de Metheny, cria uma escuta que parece tocar algo para além do que é significável.

Naná Vasconcelos: o corpo-percussão

      Poucos álbuns expressam tão bem a simbiose entre culturas quanto este — e muito disso se deve à presença do percussionista brasileiro Naná Vasconcelos. Longe de ser um mero acompanhante rítmico, Naná atua aqui como uma espécie de encarnação do ritmo primitivo da gravação. Sua percussão não marca o tempo, mas o dissolve. Seus sons criam atmosferas, convocam imagens, evocam memórias e ritualizam o silêncio.

      Utilizando berimbau, congas, sinos, sons vocais e ruídos do corpo, Naná introduz no álbum uma dimensão orgânica, quase xamânica.

      Em vez de seguir a pulsação tradicional do jazz, ele oferece uma escuta enraizada em outras temporalidades: a do candomblé, da floresta, do sertão, do tambor que ressoa no corpo antes de ser ritmo. Sua linguagem rítmica não é contável — é sensível.

      A presença de Naná convida a pensar o álbum também como uma travessia intercultural. É ele quem inscreve na música um “tempo outro”, onde o som é corpo, é sopro, é eco. Seu trabalho se aproxima de uma “escrita do real”: algo que escapa à simbolização plena, mas que insiste, que reverbera. É como se o inconsciente falasse através da pele do tambor.

      Em uma entrevista, Naná Vasconcelos falou sobre sua abordagem percussiva:

“Às vezes, crio atmosferas densas de som, nas quais sussurros, chocalhos e estrondos se movem com ritmos cativantes ou colidem em cacofonias sobrenaturais.”

Uma escuta jazzística do tempo e da textura

      Embora se afaste das formas tradicionais do jazz, o álbum se ancora profundamente em sua lógica mais essencial: a improvisação, a escuta atenta e a construção coletiva do som. Não há aqui o formato clássico de tema–solos–tema.

      Em vez disso, Metheny e Mays propõem uma expansão do campo jazzístico, abrindo espaço para atmosferas que se desenvolvem como cenários afetivos.

      A guitarra de Metheny, com seu timbre processado e, por vezes, indistinto entre o melódico e o textural, dialoga com os sintetizadores de Mays como se ambos estivessem desenhando a topografia de um sonho.

      O fraseado jazzístico aparece diluído, fragmentado, mas sempre presente na fluidez da construção harmônica e no modo como os temas emergem e se dissolvem — mais sugeridos do que expostos.

      A ECM Records, sob a direção estética de Manfred Eicher, foi fundamental para esse tipo de abordagem: a busca por espaços sonoros mais contemplativos, com foco no campo sonoro e na escuta do silêncio como elemento composicional.

      Nesse sentido, As Falls Wichita… não abandona o jazz; reconfigura-o como campo de abertura e invenção, onde o improviso se dá menos como virtuosismo e mais como gesto de escuta mútua.

      Mesmo “Ozark”, a faixa mais próxima de uma forma canção, carrega a mesma estética: o ritmo é suave, quase hipnótico, e a melodia surge como quem hesita entre aparecer e se retrair.

      A terceira faixa, “September Fifteenth”, é uma homenagem a Bill Evans — pianista cuja delicadeza e invenção harmônica influenciaram profundamente Mays. Aqui, a filiação jazzística se torna mais evidente, sem nunca perder o traço lírico e introspectivo que permeia todo o álbum.

     Lyle Mays refletiu sobre a faixa “September Fifteenth”:

“É uma peça complicada, não é? Talvez seja uma metáfora para a música — mais difícil do que parece.”

      Podemos escutar este álbum como uma escrita do desejo no tempo. A música não segue um roteiro previsível — ela se forma através de cortes, repetições, condensações e deslocamentos. Não há um tema fixo, mas uma constante transformação.

      Aqui, a música vai se construindo como o efeito de uma cadeia em movimento. A faixa-título, por exemplo, é um bom exemplo de um “tempo lógico” da escuta: há um antes, um depois e um momento de suspensão.

      Como no processo analítico, há intervalos que convidam à associação, à espera e ao encontro com o que escapa à consciência.

O som como afeto e inscrição

      A música de Metheny, Mays e Naná não busca representar algo externo; ela produz um efeito interno. Esse álbum trabalha sobretudo com o afeto. E o faz não com gestos dramáticos, mas com paisagens quase oníricas, que dizem respeito mais àquilo que se sente do que àquilo que se compreende.

      Freud afirmava que a arte (e podemos incluir aqui a música) permite uma sublimação do desejo, oferecendo ao sujeito uma via para elaborar seu mal-estar. Nesse sentido, As Falls Wichita… funciona como um dispositivo de escuta: não apenas ouvimos a música, mas somos ouvidos por ela.

      Em uma entrevista, Metheny explicou a abordagem inovadora que ele e Lyle Mays adotaram:

“Queríamos fazer um disco que mostrasse que o pensamento improvisacional poderia ser aplicado a mais do que apenas solos sobre mudanças harmônicas. Que se poderia improvisar sobre a forma em si, ou sobre a orquestração. Poder-se-ia até improvisar sobre o arco dramático de uma seção.”

O que cai?

      O título do álbum — “À medida que Wichita cai, assim cai Wichita Falls” — sugere uma lógica quase tautológica, mas profundamente enigmática. Algo cai, e, com essa queda, tudo cai junto. Como se a queda de um nome, de um lugar, de um significante, arrastasse consigo o que dele depende.

      Essa queda pode ser pensada também na chave do Nachträglichkeit (a posteriori) freudiano: só depois é que entendemos o que caiu. E é nesse intervalo, nesse tempo não cronológico, que a música desse álbum habita.

Para concluir

      Podemos pensar As Falls Wichita, So Falls Wichita Falls como um modelo de escuta: não se trata de entender, mas de acolher o que vem. Não se trata de interpretar diretamente, mas de sustentar o vazio no qual algo pode emergir.

       Escutar esse álbum é um exercício de presença e de ausência, de deixar-se atravessar por aquilo que não se sabe, mas que insiste.

Edson Zaghetto