Álbum “Kell Road” – Danish String Quartet
O álbum Kell Road, interpretado pelo Danish String Quartet, nos convida a adentrar um universo sonoro de rara delicadeza, onde os afetos transitam entre a suavidade dos arranjos e a profundidade dos significados musicais. A música opera como uma tela, oferecendo ao ouvinte a oportunidade de explorar os contornos de sua própria subjetividade.
O vazio e o silêncio são elementos estruturantes da escuta e da constituição do sujeito. A música, com suas pausas, dinâmicas e tensões, pode ser compreendida como uma metáfora para o bordejar do vazio. As melodias de Kell Road tangibilizam um movimento, tocam e chamam.
Quatro Faixas de Kell Road
I. As I Walked Out
Link: https://open.spotify.com/track/6hThK2HTcAGV6ZQHTqrq42?si=ajmSGN-2SBO1JlrnVhqaAA
Esta faixa captura um tom nostálgico, quase como um sonho que emerge e se dissolve.
Uma caminhada… Passo a passo na estrada…
O que conduz? O ritmo pulsante e a melodia cantante
A simplicidade melódica se transforma em um convite para o ouvinte refletir sobre suas próprias caminhadas internas, onde os passos são conduzidos pelas cordas como se fossem associações livres. Assim, cria-se um espaço contemplativo e quase meditativo.
A peça representa uma fusão entre a música clássica e o folclore escandinavo. É uma reelaboração de uma canção folclórica tradicional, com arranjo que destaca a estética minimalista.
A música é construída em torno de uma melodia repetitiva e hipnótica, com variações dinâmicas e harmônicas que adicionam camadas e texturas ao longo da execução. Embora não siga uma forma estritamente clássica, como sonata ou rondó, a peça adota uma abordagem cíclica, característica de muitos arranjos contemporâneos baseados em música folclórica.
O clímax é sutil, marcado por uma intensificação rítmica e pelo uso de contraponto entre as vozes. Após essa tensão gradual, a peça, então, retorna à simplicidade do início, criando um fechamento introspectivo.
A escolha de manter as harmonias modais e evitar cromatismos exagerados é fiel à tradição folclórica nórdica. Os instrumentos de cordas (violino, viola e violoncelo) são explorados em sua plenitude, utilizando técnicas como: pizzicato, sul ponticello e legato e portamento.
O Danish String Quartet emprega uma dinâmica cuidadosamente calibrada, movendo-se de pianíssimos quase inaudíveis a crescendo progressivi (crescendos progressivos).
Essa variação dinâmica dá vida à peça, permitindo que cada voz instrumental conte uma história individual enquanto contribui para o todo.
O fraseado é concebido para refletir a natureza vocal da melodia original. Cada frase é tratada com sensibilidade, respeitando os arcos melódicos e as pausas naturais.
Apesar da simplicidade da melodia, há uma sofisticação rítmica na forma como as vozes interagem, especialmente nos momentos em que o pulso principal parece fluir livremente, quase como uma improvisação.
“As I Walked Out” exemplifica a maneira como a música tradicional pode ser reimaginada em um contexto contemporâneo. A peça não apenas homenageia suas raízes folclóricas, mas também destaca o virtuosismo e a sensibilidade do Danish String Quartet, oferecendo uma experiência musical rica em textura e significado.
II. Mabel Kelly
Link: https://open.spotify.com/track/7qSAj053K7PASTfKq0JVju?si=CBAAOtruRNOxu0Q7PwYKXw
Inspirada em uma melodia tradicional de Turlough O’Carolan, essa peça evoca um sentimento de saudade. As nuances e camadas rítmicas sugerem uma dança delicada entre o que se perde e o que se reencontra.
“Mabel Kelly” segue uma forma tradicional associada à música folclórica, mas é enriquecida com nuances harmônicas e contracantos, típicos da abordagem do Danish String Quartet. A peça apresenta uma melodia central lírica e marcante, que é desenvolvida com variações ao longo da execução, explorando mudanças de timbre e dinâmica.
O quarteto emprega técnicas de contraponto para enriquecer o tecido harmônico, adicionando linhas complementares que dialogam com o tema central. O desenvolvimento rítmico e a exploração das nuances harmônicas criam tensão e resoluções, que mantêm a atenção do ouvinte.
Em um ponto alto emocional, a peça atinge seu clímax, com todos os instrumentos em plena intensidade, criando um momento de unidade sonora. A resolução, por sua vez, retorna ao caráter lírico e introspectivo, muitas vezes com uma suavidade que encerra a obra com um tom meditativo.
O quarteto explora as dinâmicas, indo de pianíssimos etéreos a fortíssimos que enchem o espaço com intensidade. Essas variações ajudam a criar contrastes dramáticos e a enfatizar momentos de maior carga emocional.
Em “Mabel Kelly,” o uso de arcos longos e legatos suaves contrasta com passagens mais enérgicas e percussivas, mostrando a versatilidade técnica dos músicos.
A sonoridade de “Mabel Kelly” é calorosa e ressonante, característica das cordas afinadas com precisão e com toques expressivos. A peça cria um ambiente intimista, evocando imagens de paisagens abertas, narrativas pessoais e, possivelmente, memórias nostálgicas. A interação entre os instrumentos gera uma sensação de diálogo musical.
“Mabel Kelly”, na interpretação do Danish String Quartet, é uma celebração do poder das cordas de transformar melodias simples em experiências sonoras ricas e profundamente humanas. Essa peça é um exemplo brilhante de como a música pode atravessar o tempo e os estilos, mantendo seu núcleo original, enquanto é reinterpretada para novos públicos.
III. Lovely Joan
Link: https://open.spotify.com/track/5sqi4kLUN1w7rfLuO3AuUJ?si=RlSR9gAETuGQYlDOBoWE-Q
Aqui, o lirismo das cordas cria uma paisagem sonora introspectiva. A melodia principal é como uma história sendo narrada, com espaços deixados para que o ouvinte os preencha com suas próprias experiências. Essa música expressa, de forma sutil, o que não é dito, algo central tanto na terapia quanto na composição musical.
IV. Once a Shoemaker
Link: https://open.spotify.com/track/0djeXw6gMR9ZlGGeVyu94S?si=0POzgF8HSoSPyxtphBo03Q
Esta faixa é particularmente rica em texturas sonoras. A música segue uma estrutura cíclica e modal, evocando a estética das canções populares escandinavas.
A rítmica de Once a Shoemaker remete às danças tradicionais nórdicas. O uso do pizzicato reforça a pulsação e acentua a textura rítmica.
A estrutura fluida, as mudanças modais e a interação expressiva entre os instrumentos tornam a música uma experiência imersiva, evocando memórias e paisagens sonoras do norte da Europa.
A relação com o tempo na música reflete a temporalidade do próprio caminho na terapia: não linear, mas cheia laços, contornos e retornos.
A música e o espaço terapêutico: Um diálogo
O Danish String Quartet consegue equilibrar tradição e inovação, reinterpretando o repertório folclórico com uma abordagem moderna.
A música de Kell Road transcende a simples experiência estética. Apresenta-se como um espaço onde se pode experimentar uma forma de elaboração. As camadas e texturas musicais revelam algo sobre a relação do ouvinte com seu desejo. Um lugar para a elaboração e para a apropriação do desejo são dois pontos fundamentais para o tratamento terapêutico.
O Danish String Quartet combina tradição e inovação, oferecendo ao ouvinte não apenas um deleite musical, mas também uma jornada introspectiva.
Em Kell Road, a música nos ensina que é no espaço do “entre” — entre as notas musicais e entre as palavras — que encontramos o que realmente importa.
Há uma citação amplamente atribuída a Wolfgang Amadeus Mozart que afirma:
“A música não está nas notas, mas no silêncio entre elas.”
Edson Zaghetto