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Feminino: Entre o Mistério e o Discurso

        “Não, nunca fui moderna. E acontece o seguinte: quando estranho uma pintura é aí que é pintura. E quando estranho a palavra aí é que ela alcança o sentido. E quando estranho a vida aí é que começa a vida.”Água Viva, Clarice Lispector

    A noção de feminino sempre ocupou um lugar singular. Ela se apresenta como um enigma, não apenas para a cultura, mas também para o próprio sujeito que sobre ela se interroga. Não se trata de definir o feminino como uma essência ou uma identidade fixa, mas de escutar os modos pelos quais ele se constitui na trama do inconsciente e da linguagem.

    O enigma feminino

    Freud, em seu texto “A Sexualidade Feminina” (1931), evidencia a complexidade do caminho que conduz uma menina a se reconhecer na posição feminina. Longe de ser uma linha reta, esse percurso é marcado por identificações, deslocamentos e escolhas inconscientes. Freud afirma que a grande questão que nunca conseguiu responder foi: “O que quer uma mulher?”

    Essa pergunta não busca uma resposta definitiva, mas reconhece que o desejo feminino escapa a qualquer captura totalizante.

    O feminino se situa não como algo que se define apenas pela anatomia ou pela cultura, mas pelo posicionamento na estrutura do desejo.

    A posição feminina se articula com a lógica do “não todo”.

    Exemplo musical sobre o “não todo”

    Na tradição clássica indiana, o músico chega ao palco com seu instrumento, como, por exemplo, o sitar, e inicia a apresentação afinando-o diante do público. Esse momento não é visto como algo técnico apenas, mas como parte do ritual do concerto. Enquanto ajusta as cordas, o músico também se conecta com a plateia e com a atmosfera do ambiente. A partir daí, ele começa o alap, uma fase lenta e meditativa na qual explora a raga — uma estrutura tradicional que guia a melodia, mas que não dita cada nota. Diferente do concerto ocidental, em que os instrumentos já estão afinados e a execução segue rigorosamente a partitura, aqui a música se constrói no presente, através da improvisação.

    Assim, cada apresentação é única, sempre aberta ao inesperado, ilustrando a lógica do ‘não todo’: há uma estrutura que sustenta, mas nunca fecha completamente o que pode emergir.

    Assim também é o feminino: ele não se fecha em um padrão absoluto, mas se sustenta nessa abertura, nesse espaço para o novo e o enigmático. Como na improvisação musical, o que emerge não pode ser totalmente previsto, mas pode ser acolhido e ouvido em sua singularidade.

    Para além do gênero

    O feminino não é exclusividade das mulheres biológicas. Trata-se de uma posição subjetiva que qualquer sujeito pode ocupar, independentemente do sexo. Assim, falar do feminino é falar de uma relação com o desejo e com o gozo que não se esgota na lógica fálica.

    Essa abordagem amplia o debate contemporâneo sobre gênero, permitindo pensar identidades e expressões que escapam às classificações tradicionais.

    Essa abertura do feminino não se restringe ao campo da sexualidade. Ela também se manifesta na criação artística, onde o sujeito se vê atravessado por forças que escapam ao controle consciente.

    Arte e o feminino

    O ato de criar — seja na composição musical, na produção pictórica ou na escrita poética — implica uma entrega a uma dimensão que transcende o controle do “eu”, abrindo espaço para aquilo que escapa à racionalidade e à plena consciência do sujeito — uma abertura para o não sabido.

    No processo criativo, o artista se coloca em uma posição de abertura, permitindo-se ser atravessado por aquilo que está para além do domínio consciente.

    Nesse movimento, ele se constitui como instrumento de uma expressão que busca emergir. Trata-se de uma experiência suplementar, que não pode ser plenamente capturada pela explicação racional, mas que se realiza no vivido do ato criador. Milton Nascimento em sua canção “A feminina Voz do Cantor” diz:

    …Minha mãe que falou
    Minha voz vem da mulher
    Minha voz veio de lá, de quem me gerou
    Quem explica o cantor
    Quem entende essa voz
    Sem as vozes que ele traz do interior?…

    Feminino é o dom
    Que o leva a entoar
    A canção que sua alma sente no ar
    Feminina é a paixão
    O seu amor musical
    Feminino é o som do seu coração…

    Estar em posição feminina é aceitar ser tomado pelo processo criativo, sem a pretensão de dominá-lo por completo. É suportar o enigma, a incompletude e a surpresa do que emerge. Assim, a arte se realiza não como produção mecânica, mas como encontro — entre o sujeito, seu desejo e aquilo que, vindo de um outro lugar, se oferece ao mundo como obra.

    Feminino e clínica

    No âmbito da clínica, escutar o feminino implica acolher a dimensão do irrepresentável que se manifesta no discurso do sujeito — aquilo que persiste como resto, mas que não se deixa traduzir integralmente em palavras. Trata-se de lidar com uma vertente do desejo que se articula ao inominável e ao incontrolável, exigindo uma escuta não normativa, capaz de sustentar e acompanhar as invenções singulares por meio das quais cada sujeito procura dar forma à sua experiência.

    O feminino não se apresenta como um traço fixo ou pré-determinado, mas como um campo aberto, atravessado pelo enigma, pela singularidade e pelo desejo. O aspecto mais relevante e fecundo na clínica consiste em escutar o que cada sujeito tem a enunciar acerca de sua própria relação com o feminino — seja no corpo, no amor, no desejo ou no gozo.

    Assim, o feminino é um convite à abertura: na clínica, na arte e na vida, trata-se de sustentar o enigma e a singularidade que cada sujeito traz em sua relação com o desejo.

    Conclusão

    Falar do feminino é falar de uma abertura, de um lugar onde o sentido não se fecha e onde a palavra encontra seus limites. Na clínica, na arte e na vida, o feminino se apresenta como convite a sustentar o enigma, a incompletude e a alteridade. Longe de ser um traço fixo ou uma identidade estável, ele se manifesta naquilo que escapa às classificações e às certezas. Assim, mais do que responder à pergunta de Freud — “O que quer uma mulher?” —, trata-se de escutar o que cada sujeito tem a inventar sobre sua própria relação com o desejo, o amor, o corpo e o gozo. Nesse movimento, o feminino se revela não como resposta, mas como ato vivo de criação e de reinvenção.

    Edson Zaghetto

    Desenho: Elisa Bara