Skip to content

No tratamento terapêutico, a ascese pode trazer alívio e, por vezes, uma paz interior inesperada.

                                                                       Ascese

            A palavra “ascese” encontra suas raízes no grego antigo; deriva de “askesis” (ἄσκησις), que, originalmente, significa “exercício” ou “prática”. Era usada para descrever o treinamento dos atletas na Grécia Antiga, uma disciplina física que se estendia à mente e à alma. Contudo, a ascese vai muito além de um simples esforço físico; ela atravessa milênios, cruzando diversas tradições filosóficas, religiosas e espirituais.

            Frequentemente, a ascese é confundida com o sacrifício, mas essas palavras não são sinônimas. Enquanto o sacrifício implica em sofrimento deliberado, um fardo imposto para alcançar uma recompensa, a ascese está na ordem da renúncia. Ela não busca infligir dor, mas, sim, cultivar um espaço interior no qual algo novo possa emergir. É uma prática de desapego, um exercício de despojar-se para que “algo” se revele.

            No cristianismo primitivo, especialmente entre os séculos II e IV, a ascese tornou-se uma prática central para os monges e para os primeiros eremitas. Nessa tradição, a renúncia não era um fim em si, mas um meio para abrir espaço para a graça.

           Outras tradições também fizeram uso da ascese. No budismo, por exemplo, o Siddhartha Gautama, antes de se tornar o Buda, experimentou práticas ascéticas extremas antes de compreender que o Caminho do Meio, uma forma de equilíbrio, era o mais frutífero para alcançar a iluminação. No hinduísmo, os sadhus se isolavam do mundo para buscar moksha – a libertação do ciclo de nascimento e morte. No estoicismo greco-romano, figuras como Epicteto e Marco Aurélio defendiam o autocontrole como forma de liberdade interior.


O apagamento de si: Um encontro – Uma abertura


         A ascese, porém, não se limita ao contexto religioso. Ela também pode ser entendida como um “apagamento de si”, uma prática de silenciamento do ego para permitir que algo maior se manifeste. Aqui, o conceito se distancia da ideia comum de “apagar-se” como um estado de apatia ou desinteresse. Ao contrário, trata-se de um apagamento que revela um “brilho opaco” – uma luminosidade discreta, que não se impõe, mas que faz emergir algo além do ego.

        Para introduzir essa ideia, dois documentários: Nelson Freire, de João Moreira Salles, e Só Dez Por Cento é Mentira, de Pedro Cezar, que explora a vida e a obra do poeta Manoel de Barros.

        Nelson Freire, um dos maiores pianistas do Brasil, é um exemplo de alguém que, ao tocar, se apaga e se torna um canal através do qual a música se expressa. Há momentos em que parece não ser ele quem toca, mas a própria música que o toma como instrumento. Da mesma forma, Manoel de Barros, em sua relação com a poesia, desaparece no ato de escrever. Ele se interessa pelo que é pequeno, insignificante, pelo lodo e pelo resto. Ao dar voz ao que é aparentemente inútil, ele se dissolve, permitindo que a palavra floresça por si só.

       Ambos, Freire e Barros, ao se apagarem, tornam-se mediadores de algo maior: um, da música; o outro, da palavra. Esse apagamento não é um exercício consciente de “autossacrifício”, mas uma abertura – uma travessia para além do “eu”.


O silêncio que fala


        Fazendo uma relação com o zen-budismo, os mestres zen não ofereciam respostas prontas, mas, ao contrário, confrontavam seus discípulos com paradoxos e impasses. Nesse contexto, a ascese pode ser entendida como um exercício de esvaziamento, um buraco no saber, que permite uma nova travessia.

        Em vez de uma busca por respostas, é uma renúncia à onipotência do “eu” – um movimento que cria um espaço vazio, em que a verdade do sujeito possa emergir. “Wo es war, soll ich werden” (“Onde isso era, devo advir”), como diria Freud. No lugar do eu inflado, surge o silêncio que fala. A ascese, então, não é uma negação da vida, mas uma abertura ao que, dentro de nós, ainda não encontrou voz.

      Assim, no tratamento terapêutico, essa prática de apagamento pelo uso da palavra pode trazer alívio e, por vezes, uma paz interior inesperada. Trata-se de diminuir o “euzinho” para que algo outro possa emergir e falar. Não é apagar-se de brilho, mas, sim, iluminar-se com uma luz diferente, um brilho que se recusa a ostentar-se.

Edson Zaghetto